RIO — O Brasil vive um paradoxo. Há no país quase 15 milhões de desempregados enquanto empresas reclamam de dificuldades para preencher vagas, inclusive de nível técnico e operacional, num apagão de mão de obra qualificada.
Candidatos para vagas de ensino médio na indústria mas que não conseguem ler um manual ou não têm conhecimentos básicos de matemática, jovens que tentam um posto no setor de serviços mas têm dificuldades para enviar um email ou mandar sua documentação às empresas de maneira digital, além de não saberem se expressar corretamente na comunicação com os clientes, são alguns dos relatos feitos por executivos e recrutadores.
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O impacto da pandemia na educação, particularmente no ensino médio, e o avanço da digitalização nos negócios agravam o que os especialistas apontam como mais um gargalo na economia, mesmo com o país tendo, no momento, o maior contingente de desempregados da sua história.
— Estamos vivendo um apagão de mão de obra, isso é categórico. Apagão é a expressão do momento e também um vaticínio, uma previsão de que, daqui pouco, não vamos conseguir sair dessa situação, permanecendo na armadilha de país de renda média — diz o economista Ricardo Henriques, superintendente do Instituto Unibanco.
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Na multinacional alemã de intralogística Jungheinrich, onde muitos processos requerem conhecimento em automação, elétrica e eletrônica, a dificuldade de encontrar profissionais piorou na pandemia, segundo a gerente de RH, Thalyta Haertel:
— Sempre houve dificuldade na qualificação de técnicos , mas agora não conseguimos nem contratar quem esteja cursando, pois houve evasão das escolas. Percebemos essa deficiência nos estagiários que ficaram só no EAD (ensino a distância).
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A Confederação Nacional da Indústria (CNI) estima que, no setor, faltarão 300 mil profissionais nos próximos dois anos. São ocupações de ensino médio, como técnico em eletromecânica, programador de unidades eletrônicas, especialista em telemetria e robotização.
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Segundo Felipe Morgado, gerente-executivo de Educação Profissional do Senai, a demanda estimada é de 401 mil trabalhadores até 2023, mas a formação só deve alcançar 106 mil.
— Formamos só 11% (dos estudantes) em ensino técnico no Brasil contra 42% na União Europeia. Dos formados no Senai, 72,5% são empregados em até um ano. Em 2021, subiu para 74%. Novas tecnologias digitais estão sendo inseridas na indústria. É uma rotina mais automatizada, que aumenta a necessidade de profissionais mais qualificados.
Henriques lembra que a parcela de jovens com ensino técnico chega a 70% em alguns países da OCDE (que reúne nações desenvolvidos). Sem o mesmo aqui, a multinacional francesa de pneus Michelin, viu como solução trabalhar diretamente com escolas técnicas, diz Feliciano Almeida, CEO da companhia para a América do Sul:
—Para fazer um pneu, uma pessoa tem de ser treinada por seis meses. Por vezes, a gente tem dificuldade que as pessoas passem em testes considerados básicos.
Evasão agrava situação
O problema está também em setores como comércio e serviços. A diretora de Pessoas e Cultura da Qualicorp, Flavia Pontes, conta que há mais candidatos por vaga para estágio e trainee que para a área comercial, mas nem sempre quem tem ensino superior oferece a experiência necessária.
A empresa de planos de saúde reavaliou o perfil das vagas anunciadas e tirou exigência da faculdade. Ainda assim, não é fácil preenchê-las.
Carolina Recioli, gerente sênior de Talentos no Mercado Livre, diz que é difícil contratar, dos cargos de base aos gerenciais, principalmente em áreas como tecnologia e logística. Até o fim do ano, a empresa abre cerca de 6 mil vagas nas duas áreas. Por isso, resolveu assumir o treinamento.
— Na logística, a exigência é de ensino médio e sem experiência, mas ainda assim faltam habilidades em português, matemática e digital. Às vezes, o candidato tem dificuldade de enviar sua documentação digitalmente — conta Carolina.
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Jeyele de Lima Moura, de 22 anos, foi treinada na empresa. Aprendeu o básico de informática, logística e desenvolvimento pessoal. Há dois anos, ela trocou o sertão de Pernambuco pela Bahia na expectativa de trabalhar e fazer faculdade. Mas, com a pandemia e tendo apenas o ensino médio, teve dificuldade de achar emprego.
— Não sabia nem como era uma entrevista — conta Jeyele, que entrou num programa de capacitação do Mercado Livre para jovens e agora atua como representante de envios.
Dados da plataforma de seleção Gupy mostram que as áreas com maior dificuldade de contratar hoje são operações (37%), finanças e administração (26%) e comercial (19%).
—A maioria das vagas no Brasil é júnior e operacional, mas as pessoas ficam no processo por não terem o básico. Além de TI, há escassez de mão de obra qualificada no varejo, no atendimento, por causa da dificuldade de comunicação, até por não saberem usar e-mail ou não terem empatia com o cliente — diz Dedila Costa, executiva da Gupy.
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A falta de diversidade é a preocupação da consultoria McKinsey. A empresa anunciou na semana passado seleção para universitários, recém-formados ou profissionais com até dez anos de experiência interessados em fazer transição de carreira e migrar para a área de consultoria.
— Historicamente, atraíamos um perfil basicamente de engenheiros homens. E não chegávamos a muitos outros talentos. Não estávamos satisfeitos com a diversidade. Não apenas de gênero, etnia, mas de pessoas de diferentes níveis socioeconômicos e momentos de carreira, por trazer pontos de vista complementares — explica Andréa Waslander, diretora de Desenvolvimento Profissional para a América Latina na consultoria.
Para ela, a digitalização aumenta ainda mais a ruptura, especialmente para os jovens de baixa renda. Com uma situação socioeconômica desfavorável, muitas vezes, não conseguem nem estudar ou participar de um processo seletivo.
‘Geração estigmatizada’
O economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, diz que o ensino médio deixou de ser uma etapa que diferencia a pessoa para o mercado de trabalho. Em 18 anos, o retorno em salário para quem tem o ensino médio recuou 58%, enquanto que, para aqueles que têm baixa escolaridade ou nível superior, não mudou tanto. E 15% dos jovens de 15 a 17 anos já estavam fora da escola antes da pandemia.
—O Brasil foi muito relapso em adaptar a educação ao mundo digital. Não tivemos política pública para isso. E criamos uma desigualdade de oportunidade ainda maior— diz Neri.
Nos últimos dois anos, só houve saldo positivo de contratações para vagas que requerem curso superior ou mais. Foram mais 2 milhões ocupados desde o primeiro trimestre de 2019 contra queda de 8,2 milhões entre os de menor formação.
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E a pandemia fez regredir a absorção do conteúdo do ensino básico, conforme mostrou estudo do Insper com o Instituto Unibanco.
— Do lado da oferta, tem um problema enorme. Quando não está estudando, o jovem perde o que já aprendeu. Em um ano, aprende 15 pontos da escala Saeb (Sistema de Avaliação do Ensino Básico) em matemática e 20 em português. Perdeu dez pontos só em 2020 — diz Laura Muller Machado, professora do Insper.
Ela acrescenta:
—Não há referência no Brasil de outro momento de problema de oferta (de mão de obra) tão grande. Pode ser uma geração estigmatizada.
'Apagão' de mão de obra: desemprego é recorde, mas empresas não encontram pessoal qualificado - Jornal O Globo
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