Como uma companhia em recuperação judicial, como a Itapemirim, conseguiu criar uma empresa aérea? Essa é uma operação polêmica desde o anúncio feito pelo dono do grupo, Sidnei Piva de Jesus, em fevereiro de 2020. À época, ele anunciou um aporte de US$ 500 milhões na nova empresa por meio de um fundo governamental dos Emirados Árabes Unidos.
O dinheiro não chegou, mas ainda assim, a empresa decolou. Na sexta-feira (17) ela parou de voar após uma série de supostas irregularidades, como atrasos de salários e a falta de pagamento a prestadores de serviço e fornecedores.
Em nota, a companhia alega que estava negociando individualmente com cada um de seus credores. Quanto ao atraso nos pagamentos de funcionários, a Itapemirim diz que passou por uma dificuldade pontual, o que fez com que metade de cada salário fosse pago no começo do mês de dezembro e o restante teve de ser parcelado.
Qual foi o caminho da empresa, desde a sua recuperação judicial até a suspensão de suas atividades? O que levou à paralisação dos voos?
Dívidas e venda
Empresas do grupo Itapemirim apresentavam problemas financeiros que culminaram em um pedido de recuperação judicial no ano de 2016. A empresa havia sido fundada em 1953 por Camilo Cola, um ex-combatente do Brasil na Segunda Guerra Mundial, mas, na década passada, começou a enfrentar sérios problemas financeiros, que resultaram no pedido de ajuda.
Em 2016, as empresas do grupo Itapemirim foram vendidas para os empresários Camila de Souza Valdivia e Sidnei Piva de Jesus pelo valor simbólico de R$ 1.
Tentou comprar a Passaredo antes
Em 2017, a Itapemirim anunciou a compra da companhia aérea Passaredo, que passava por um processo de recuperação havia anos. Em agosto daquele ano, porém, a Justiça decretou o fim da recuperação judicial da Passaredo, e a empresa voltou atrás na negociação com a Itapemirim.
Segundo a Passaredo, a Itapemirim descumpriu condições estabelecidas em contrato, o que teria feito com que o negócio não prosperasse.
Em um processo judicial de 2018, ao qual o UOL teve acesso, os novos donos da Itapemirim relatam terem desembolsado US$ 1,5 milhão (R$ 8,6 milhões no câmbio atual) como sinal para trazer aviões da canadense Bombardier ao Brasil para operar pela empresa.
As negociações, entretanto, não progrediram, a Itapemirim desistiu da compra, e a empresa só viria a voar de fato três anos depois.
Autorização da Justiça permitiu criar aérea
A Itapemirim Transportes Aéreos foi criada com a formação da sociedade entre a Viação Itapemirim (em recuperação judicial) e o empresário Sidnei Piva.
Em meio à preocupação relativa à recuperação judicial, em 2020, credores questionaram a decisão do dono do grupo em criar uma empresa aérea.
À época, uma decisão da Justiça paulista garantiu à empresa que seu braço aéreo fosse fundado. Segundo o juiz responsável pelo caso, a empresa tinha liberdade para conduzir seus negócios, desde que respeitasse o plano votado pelos credores, o que a empresa sempre afirmou que vinha fazendo.
Até setembro de 2021, foram aproximadamente R$ 41 milhões investidos pelo grupo nas duas empresas, montante praticamente suficiente para quitar as dívidas trabalhistas de todo o grupo, que estão em torno de R$ 41,5 milhões.
Pedido para sair da recuperação judicial
Em maio de 2021, após mais de cinco anos do início da recuperação judicial, o grupo Itapemirim protocolou um pedido para que o processo fosse encerrado. A ação ainda não foi julgada, e não há prazo para que isso ocorra.
Para conseguir sair da recuperação judicial, uma empresa tem de provar que vem cumprindo o plano aprovado pelos credores.
Embora a Itapemirim sempre tenha alegado o correto cumprimento desses deveres, relatórios da administradora judicial, a EXM Partners, aos quais o UOL teve acesso, apontam que o grupo não tem sido transparente quanto ao seu caixa.
Em diversos momentos, a empresa responsável por acompanhar a saúde financeira do grupo se queixou ao Judiciário sobre a falta de transparência do grupo e o não envio de documentos.
A Itapemirim diz que vem cumprindo na íntegra com todos os deveres estabelecidos na recuperação judicial. Quanto aos questionamentos relativos à empresa aérea, o grupo alega sigilo de mercado para não detalhar os investimentos e contratos realizados.
Capital social baixo
A Itapemirim Transportes Aéreos nasceu com um capital social registrado no valor de R$ 380 mil, sendo R$ 379 mil oriundos da Viação Itapemirim e R$ 1.000 vindos de Sidnei Piva de Jesus.
Segundo fontes ligadas ao setor ouvidas pelo UOL, esse é um valor muito baixo para uma operação inicial tão grande. A Azul, que foi fundada em 2008, tinha começado suas operações com menos rotas e um capital social inicial de cerca de US$ 250 milhões (R$ 1,4 bilhão no câmbio atual).
Antes de sua estreia, a Itapemirim anunciou que tinha planos para chegar a 35 destinos e ter 50 aviões até junho de 2022. Desse total, pretendia ter 20 aviões em sua frota até o fim de 2021, expectativa que foi reduzida para dez aeronaves. Hoje, apenas sete foram incorporadas à empresa.
Questionada sobre esse valor, a empresa não respondeu ao pedido de resposta da reportagem.
Outorga questionada
Em junho, dias antes de a empresa começar a voar, foi realizada uma audiência pública na Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados para debater o procedimento de obtenção das autorizações de uma empresa aérea no Brasil.
A reunião contou com a presença de representantes da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), Infraero, da Itapemirim e dos credores do grupo.
À época, o diretor da Anac Sérgio Leitão disse que a agência se restringe a verificar a regularidade fiscal da empresa que está pleiteando a outorga para explorar os serviços aéreos, e que no caso da Itapemirim, esse procedimento durou um ano e foi bem criterioso.
Leitão ainda afirmou que o juiz do processo de recuperação judicial da empresa chegou a ser consultado para averiguar se haveria algum problema em conceder a autorização à companhia.
Mais recentemente, no começo de dezembro, a comissão se reuniu novamente onde foi debatida a saúde financeira diante das diversas denúncias de irregularidades do grupo.
Nas duas reuniões, que ocorreram de maneira aberta para a participação popular, funcionários do grupo questionavam o uso de recursos que poderiam ser destinados para quitar os credores na criação da companhia aérea.
Em ambas as situações, a empresa alegou estar agindo dentro da lei e que não há irregularidades com a concessão.
Na resolução 377 da Anac, que determina como é concedida a outorga às empresas aéreas, está definido de maneira abrangente que a "empresa deverá comprovar sua regularidade fiscal, previdenciária e trabalhista".
Já em outra regulamentação da própria agência, é exigido que o operador demonstre ter capital suficiente para fazer frente aos custos de sua operação.
Fontes ouvidas pelo UOL fazem a ressalva de que a Itapemirim Transportes Aéreos é uma empresa nova, criada em 2020, e que, por isso, não haveria problemas quanto à sua regularidade.
Com isso, as questões trabalhista, financeira e fiscal não seriam um empecilho, já que a empresa aérea não teria nada que indicasse alguma irregularidade, a despeito da recuperação judicial de sua dona.
Somado a isso, a afirmação feita pelo juiz do processo de que a empresa tem liberdade na condução dos seus negócios com o objetivo de sair da recuperação judicial também pode ter influenciado a concessão da outorga, segundo fontes ouvidas pela reportagem.
Anac
Questionada pela reportagem se não houve alguma falha em permitir uma empresa sem capital aparentemente suficiente, a Anac afirmou que sua análise é estritamente técnica e segue padrões internacionais.
Segundo a agência, exigir capital social mínimo para a criação de uma companhia do tipo seria "criar uma barreira artificial à entrada de empresas que teriam condições de se constituírem tecnicamente com um dispêndio de recursos financeiros menor, sem a devida garantia de que o capital será utilizado em benefício da empresa".
Além disso, continua a Anac, o dinheiro investido na empresa não significa que ele seria investido necessariamente para cumprir os voos ofertados.
Sobre a Itapemirim, a Anac diz que enviou ofícios ao administrador judicial, ao Ministério Público Estadual e à Justiça, solicitando informações sobre o processo de recuperação judicial do Grupo Itapemirim ou outro fator que pudesse impactar na operação da nova companhia.
Questionada se teria de acompanhar a saúde financeira dos sócios da nova empresa, a Anac informou que essa questão extrapola a própria empresa que está pleiteando a autorização para voar, além de não haver previsão legal.
Como a Itapemirim, em recuperação judicial, criou uma empresa aérea? - UOL Economia
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